Eu Sou Malandro?
Ato I – No espelho da dúvida
Me olho no espelho como quem tenta decifrar um ponto riscado antigo — daqueles que os mais velhos desenhavam não pra ter resposta, mas pra ter coragem de perguntar e seguir andando, mesmo sem ouvir a resposta.
E me pergunto, com a cara meio torta de quem já foi bobo e herói na mesma semana:
"Eu sou malandro?"
Dizem que sim. Palavras colhidas como flores no asfalto: sagaz, inteligente.
Minha psicóloga sorriu quando leu, mas eu só consegui pensar no Zé Pelintra rindo de mim lá das encruzas.
Porque malandro de verdade, aquele dos sambas de Wilson Batista, não trava diante de um olhar feminino.
E eu? Travo.
As palavras viram areia, as mãos suam como bêbado em madrugada de copo vazio — entre o frio da ressaca e o calor da vergonha.
Malandro é quem samba entre navalhas, dizem.
Eu, às vezes, fico na porta do salão, ouvindo a música lá dentro e fingindo que escolho não entrar.
Mas aí lembro: meu samba é outro.
É o verso que solto num comentário no Instagram, a piada que desarma o arrogante, o silêncio que observa mais do que fala.
Minha boemia não é de terno branco — é de chinelo e cerveja morna, de risada alta que esconde o medo de não ser suficiente.
Por que a dúvida bate, então?
Porque malandragem não é cartilha.
É o improviso que nasce quando a vida te empurra pro abismo e você descobre que pode voar — ou pelo menos cair com estilo.
Ato II – O malandro em campo
Foi num pátio de escola, diante de três homens que confundiam bravata com justiça, que eu entendi.
O menino no chão, eu no meio — sem pensar, empurrei a raiva deles pra longe como quem tira poeira de disco de vinil.
Zé Pelintra talvez tivesse usado astúcia, mas eu usei o corpo.
E funcionou.
Aprendi com meu pai — mesmo ele sendo um mestre das escolhas erradas — que lealdade é não abandonar os seus.
Com minha mãe, que firmeza é continuar plantando flores num quintal cheio de pedras.
Com minha irmã, que ternura pode ser armadura.
E com Seu Zé, que malandragem também é saber calar quando a verdade machuca mais do que a mentira.
Já salvei cachorro de bala perdida.
Já ouvi desabafo de desconhecido em ponto de ônibus.
Já fugi de confusão seguindo só o faro.
Minha herança não vem de sangue nobre —
vem do asfalto quente sob o pé cansado, das conversas jogadas fora no ponto final, dos silêncios que falam alto nas madrugadas.
Dos malandros que Manuel Antônio de Almeida viu nascer nas ruas do Rio, e que eu vejo renascer no busão lotado.
Ato III – Entre o axé e o asfalto
Minha malandragem não cabe em fotografia antiga.
Herdei o sorriso de Noel Rosa, mas não seu terno.
O batuque de Bezerra, mas não sua garganta.
A coragem de Zé Keti, mas não seu microfone.
Ela tá nos gestos miúdos:
– No jeito que ensino alguém a tocar aquilo que toca meu espírito
– Na paciência de ouvir o desespero alheio antes de dar conselhos
– No modo como transformo meu quintal num terreiro urbano, onde converso com guias e cachorros com a mesma reverência
Porque a malandragem verdadeira não tá no palco —
tá na plateia, onde a vida assiste... e a gente improvisa.
Meu ponto riscado é a cicatriz no joelho de quando caí tentando proteger alguém.
Minha gravata vermelha é o boné surrado que uso pra esconder o cabelo calvo.
Minha oferenda é o texto que escrevo às três da manhã, sem saber se a vida é samba-enredo, rap de protesto ou ladainha de Exu —
mas sabendo que, seja o que for, é minha missão escrever.
E se ser malandro é rir quando o mundo te diz pra chorar,
então eu sou.
Não o clássico, não o perfeito — mas o que improvisa.
O que erra, se levanta e dança mesmo com o pé sangrando.
Último ato
"Então, eu sou malandro?"
O espelho não responde.
Mas no fundo, eu sei:
Sou filho de uma linhagem que transforma espinhos em letras de samba.
Sou o que fica na porta do salão, mas canta no banho.
Sou o que protege, mesmo sem saber como.
E se isso não for malandragem...
Que pelo menos seja humano.
E, sendo humano,
já é sagrado.